Inibição e jogos de poder em relacionamentos amorosos
Na reflexão de hoje olharemos para como alguns relacionamentos amorosos podem ser matizados por atitudes de inibição e jogos de poder, o que não raramente pode trazer sofrimento para os parceiros. Olharemos para algumas definições de excitamento, ansiedade de abandono e ansiedade de sufocamento, amor romântico e amor líquido.
Toda relação implica em uma dinâmica própria, digna de ser evidenciada e apreciada
A prática clínica revela muitos exemplos de casais em que há pouca liberdade para expressão de alguns sentimentos e energias que poderiam trazer transformações para a relação do casal.
Em casos assim, há a formação de um contrato em que o status quo de uma relação deve ser preservado mesmo às custas da espontaneidade e satisfação individual dos membros da relação. Este contrato, embora seja quase sempre tácito e implícito, é bastante real e traz consequências visíveis.
Como se constitui a relação
Para entendermos a reflexão que estamos construindo, será útil imaginarmos o percurso que forma uma relação de um casal. Muitas vezes o casal se forma por meio de uma partilha de interesses e a partir de um interesse mútuo por parte dos parceiros. Não raro esse encontro é marcado por experiências de êxtase e apaixonamento, que traz um colorido especial a vida de cada uma das pessoas envolvidas. O casal assim apaixonado vive um estado de encontro e de pouca diferenciação entre os participantes, uma vez que as diferenças individuais que poderiam romper a união extasiante são colocadas de lado para preservar o bem estar do casal.
“Uma relação entre dois parceiros precisa lidar com questões que cada um traz para o relacionamento, questões que antecedem o encontro entre eles, mas que são atualizadas neste novo momento da vida dos membros. ”
Estas diferenças que são alienadas da experiência do casal podem ser compreendidas como formas de expressão de necessidades importantes de cada parceiro. Naturalmente, necessidades que não são satisfeitas demandarão atenção e alguma forma de compensação. Esta situação tornará insustentável o tipo de relacionamento em que as individualidades não têm espaço para se expressar.
Poderíamos apresentar como exemplo de demandas individuais que podem trazer transformações para o relacionamento a necessidade de passar mais tempo com amigos ou a sós, fazendo coisas sozinho. A introdução de outras pessoas e outras experiências pode trazer transformações para o relacionamento do casal, afinal, todo contato é transformador. Esta transformação pode ser extremamente nutritiva e necessária para o relacionamento a dois, uma vez que rompe com este estado de indiferenciação e restaura a possibilidade do encontro. Afinal, só há encontro e só há contato se houver pelo menos duas pessoas. Entretanto, muitos casais temem e evitam a experiência dos parceiros com outras pessoas ou até consigo mesmos exatamente por causa dessa mudança.
As necessidades e demandas de um organismo o energizam e geram excitamentos e estes, quando inibidos, se expressam como ansiedade. Em um contexto cronicamente desfavorável para o escoamento do excitamento é compreensível que se formem hábitos inibitórios (Perls, Hefferline e Goodman, 1951/1997). Aqui precisamos no fazer algumas perguntas. Por que um relacionamento amoroso se configuraria como um ambiente perigoso para a expressão da individualidade? De que maneira uma relação antes inundada de satisfação viria a se tornar um ambiente inóspito?
Para responder a estas perguntas será importante lembrarmos que uma relação entre dois parceiros precisa lidar com questões que cada um traz para o relacionamento, questões que antecedem o encontro entre eles, mas que são atualizadas neste novo momento da vida dos membros. Afinal, como dissemos acima, necessidades ignoradas continuarão a demandar atenção e fechamento.
Se, por exemplo, uma pessoa tem dificuldade de se entregar e de se mostrar vulnerável, expressando seus sentimentos e afetos, pode levar este hábito inibitório para o relacionamento, o que traz consequências para a vivência do casal e pode, dentre várias possibilidades, passar a impressão de que a outra pessoa não é importante. Aqui vemos um contexto em que a inibição dos sentimentos de uma pessoa se apresenta como inibição de uma forma de se relacionar e da construção dificuldades para que o relacionamento a dois seja nutritivo.
Amor e poder
Infelizmente, nossa cultura nos ensinou a misturar amor e poder, de maneira que muitas pessoas se engajam em movimentos de tentar controlar o outro para que ele dê conta de suas próprias necessidades, inclusive a de ser amado. Uma das formas de controlar um parceiro é jogar com as fragilidades do outro e com suas questões também não resolvidas, como o medo de ser abandonado, por exemplo, ou ansiedade de abandono (Miller, 1995).
De forma muito simplista podemos afirmar que uma das razões pelas quais muitos relacionamentos abusivos se mantêm é pelo medo que pelo menos um dos parceiros têm de ser abandonado ou de ficar sozinho. Desta maneira, o parceiro que precisa controlar o outro para ser atendido em suas necessidades pode apelar para este medo de ser deixado, mobilizando uma ansiedade de abandono.
“É comum que quem sente ansiedade de abandono também jogue com o outro parceiro, frequentemente tocando na sua ansiedade de sufocamento, de perda de sua individualidade e liberdade. ”
Ainda que seja lamentável que este tipo de configuração de relacionamentos ocorra, não precisamos entrar em um juízo de quem é o vilão e quem é a vítima. Isto porque pessoas que desempenham ambos os papéis sofrem e procuram ajuda no consultório, embora seja mais comum que a pessoa que procura ajuda seja a que sente medo de abandono, uma experiência que pode acometer ambos os parceiros.
Na verdade, é comum que quem sente esta ansiedade de abandono também jogue com o outro parceiro, frequentemente tocando na sua ansiedade de sufocamento, de perda de sua individualidade e liberdade (Miller, 1995).
Entendendo o embate
Uma das formas que temos para compreender por que esta luta ocorre e por que os parceiros entram nestes jogos por poder é olharmos para a disponibilidade de recursos emocionais que as pessoas em relacionamentos dispõem. Possivelmente estamos falando de parceiros que sentem que não há abundância de afeto, o que satisfaria necessidades fundamentais, assim como não há uma abundância de oportunidades de realização de suas potencialidades e, sendo escassos, estes recursos precisam ser disputados em uma luta competitiva.
Estamos descrevendo uma dinâmica entre duas pessoas em um relacionamento, mas poderíamos estar falando aqui de características de nosso sistema econômico e do mercado de trabalho, o que ilustra de que maneira o campo em que vivemos constitui a forma como vivemos nossas experiências.
Ainda que ainda de jogo amoroso seja atraente, alguns jogos amorosos podem ser bastante danosos
Por outro lado, a escassez de afeto pode se constituir por meio de um fechamento de um casal ou de um de seus membros a outros contextos que seriam nutritivos, como contatos com amigos e familiares e a escassez de realização pode se dar também devido a renúncia a projetos de desenvolvimento em nome da manutenção do bem-estar da relação.
Importante esclarecer que os hábitos inibitórios de excitamentos que os mobilizaria para dar conta destas necessidades podem ter começado em contextos anteriores e se mantêm na atualidade, como experiências passadas que fazem parte de experiências presentes sem as causar.
O relacionamento a dois, entendido como um processo de contato, é uma forma de resgatar o que cada membro traz de passado e recriar esse passado em direção a novas possibilidades de futuro abertas pela experiência da relação. Assim, quando duas pessoas se relacionam, trazem suas questões individuais e as atualizam na relação, mas também têm a oportunidade de se recriarem e se renovarem, inventando formas novas de lidar com problemas passados e presentes. Em outras palavras, quando um casal se forma, também se configura oportunidades de renovação de cada membro no processo de tornarem-se novas pessoas. Afinal, “contato é fazer e achar a solução vindoura” (Perls, Hefferline e Goodman, 1951/1997).
Dito de outra forma, se em um relacionamento a dois os membros têm fortes necessidades de atenção ou têm dentro de si crianças feridas que precisam de cuidado, poderão retomar estas demandas no relacionamento e encontrar novas formas de dar conta delas. Poderão aprender em que medida podem esperar do outro uma forma de cuidado que seja satisfatória e em que medida precisarão caminhar em direção a autonomia, cuidando de si mesmos e não sobrecarregando o parceiro com expectativas que este não tem o dever nem o poder de suprir.
Concluindo
Falamos aqui de experiências de casais que vivem um amor romântico, marcado por idealizações, projeções e expectativas de plenitude e êxtase contínuos. Entendemos que este tipo de experiência ainda ocorre na contemporaneidade e é de certa forma uma maneira secular de experimentar algo quase divino (Johnson, 1987/2009).
Entendemos que muitas relações hoje são marcadas por um amor liquido, típico de nossa modernidade, ou seja, relações rápidas, fugazes e entendidas como investimentos e buscas de segurança (Bauman, 2004).
Reconhecemos que, de maneira geral, os relacionamentos não são mais duradouros e estáveis como eram algumas décadas atrás. Aliás, muitas pessoas evitam se engajar em relacionamentos que lhes demande alguma entrega ou frustração e inibem excitamentos que as mobilizaria em processos de contato nutritivos.
Por outro lado, se os relacionamentos fossem sempre totalmente descartáveis e fugazes, não veríamos casais procurando psicoterapia de casal ou pessoas que sofrem por muito tempo em relacionamentos abusivos. Por isso, consideramos que seja importante refletirmos sobre as dinâmicas que trazem vitalidade e sofrimento para estas partilhas de afeto e sentimento.
Finalmente, gostaríamos de assinalar a importância da psicoterapia como espaço de promoção de cuidado e de clareza da forma como o casal se relaciona. Assim como a psicoterapia de abordagem gestáltica de maneira geral, na terapia de casal o psicoterapeuta não se propõe a dar respostas nem soluções mágicas, mas a facilitar a clareza das comunicações, formas de se relacionar, expectativas e sentimentos.
Ao fazer isso, o terapeuta facilita exatamente esta retomada de quem cada membro da relação foi e facilita a possibilidade de recriação, encontrando novas formas de dar conta de inibições e dificuldades que cada um traz para a relação.
Como dissemos, cada um traz para o relacionamento alguma bagagem e o parceiro não tem o poder nem o dever de carregar isto que cada um leva para a relação, embora possa tornar isto mais leve. Portanto, seria importante que, juntamente da psicoterapia de casal, cada parceiro pudesse contar com suas próprias formas de promoção de cuidado e de autonomia, como a psicoterapia individual.
Esperamos ter promovido neste texto reflexões sobre algumas dentre as infinitas dinâmicas por meio das quais duas pessoas se relacionam. Acreditamos que ainda há muito mais a ser dito e consideramos importante concluirmos este texto com mais perguntas:
- Como temos nos relacionado com os outros?
- Quais as minhas questões pessoais que levo para meus relacionamentos?
- Quais são minhas expectativas e como lido com minhas frustrações?
- Vivo relacionamentos em que a mudança é bem-vinda ou busco manter tudo como está?
Sergio Ricardo – Mestre em Coaching pela FCU – Flórida Christiam University , Educador Físico, com especialização em Psicossomática, e Pesquisador em: Neurociência Comportamental, Doenças Psicossomáticas, Neurofisiologia das Emoções. Formador e Instrutor de Cinesiologia Educacional e Terapia do Comportamento, Balanceamento Muscular, Memória Celular, Desativação de Estresse, Funcionamento do Cérebro nos Processos de Aprendizagem, Relacionamento Interpessoal, Integração e Dominância Cerebral, Ginástica Cerebral (Neuróbica e Neurofitness). Advanced Trainer em PNL, Constelador Sistêmico. Consultor Empresarial Especialista em Desenvolvimento de Liderança, Business Plan, Cultura Organizacional e Gestão de Mudança;
Referências
Bauman, Z. (2004). Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Editora Schwarcz-Companhia das Letras.
Johnson, R. (1987/2009). We -A chave da psicologia do amor romântico. São Paulo: Publicações Mercuryo Novo Tempo.
Miller, M. (1995). Terrorismo íntimo – A Deterioração da Vida Erótica Trad. Dirce de.
Perls, F., Hefferline, R., & Goodman, P. (1951/1997). Gestalt-terapia. São Paulo: Summus.